A destruição da Biblioteca Municipal
de Leipzig no ano de 2003

Frank Fischer ∙ Editora: SuKuLTuR ∙ Berlin ∙ 2005
 
Tradução: Susana Leite ∙ 2009
 

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CULTURA DO LIVRO

"Ataque terrorista à palavra escrita"

Um estudante de germânicas que desfigurou livros da Biblioteca Municipal de Leipzig, sistematicamente e ao longo de vários anos, foi agora apanhado, mas mesmo assim a cidade do livro anda preocupada com a sua fama. Por Frank Fischer

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A Biblioteca Municipal de Leipzig fica na Praça Wilhelm Leuschner, mesmo entre o centro e a área estudantil da cidade, a conhecida Südvorstadt. Na esquina mais próxima estão estacionados os carros patrulha mesmo à frente da esquadra central da polícia. Não é exactamente o lugar ideal para se cometer um crime.

O edifício, originalmente inaugurado em 1896 como museu de arte aplicada e etnologia, serviu depois da segunda guerra mundial de prédio de escritórios a uma fábrica nacionalizada da indústria química, até se ter transformado em 1991 na central das bibliotecas de Leipzig. As salas de pé direito elevado, que foram no fundo pensadas para museu, ainda estão conservadas, mas lá encontram-se neste momento cerca de meio milhão de unidades de armazenamento de informação.

As prateleiras ainda estão acima de tudo cheias de livros, mas os empréstimos são maioritariamente vídeos e CDs, segundo Elisabeth Christ. Esta senhora que trabalha no balcão de informações do primeiro andar, de aparência agradável e na casa dos cinquenta, acrescenta, quase orgulhosa, que devido à elevada demanda que recentemente tem assolado a biblioteca, também há DVDs para empréstimo. Ela já não parece conseguir divertir-se muito facilmente com livros.

Para ela tudo começou no final do ano passado pouco antes do Natal. Os casos de desfiguração de livros foram aumentando notavelmente de frequência e, quando uma leitora um dia lhe colocou em cima da secretária um livro para crianças totalmente adulterado, ela própria quis conhecer a razão de fundo do assunto.

Ao examinar aleatoriamente livros na secção de crianças, foram-lhe de imediato surgindo exemplares, cuja numeração das páginas estava furada e havia cantos cortados. Ainda a incomodaram mais os numerosos rabiscos feitos a caneta de feltro. Por fim, ela notificou a administração da biblioteca sobre a sua descoberta, e esta anunciou uma verdadeira investigação.

Agora ninguém pode folhear completamente os mais de 300 000 livros do acervo, mesmo se algumas das desfigurações participadas se refiram somente a uma única página. A constância com que os estragos já conhecidos foram feitos até ao momento, assim como a existência de um marcador verde-escuro usado em mais do que um caso levou a concluir que foi um acto delinquente premeditado por um criminoso em série.

Como primeira medida foi atribuída a cada funcionário da biblioteca a tarefa de investigar alguns metros de prateleiras em busca de livros estragados, durante os seus minutos livres ao longo do horário normal de funcionamento.

O resultado deste primeiro inventário fugaz constatou que mais de 700 livros foram total ou parcialmente desfigurados, milhares de livros extensamente rabiscados e páginas escrevinhadas de modo inestético, que para além disso, estavam muitas vezes rasgadas e coladas umas às outras.

Todavia nem o estrago que acabara de se verificar, nem o escândalo que se avizinhava público ocupava a administração da biblioteca. No que toca aos grafitis nos livros, trata-se aparentemente de uma manipulação sistemática do acervo, de um "work in progress" que tinha de acabar o mais rapidamente possível.

Quem quer que fosse o responsável não podia ter encetado esta desmesurada destruição simplesmente aos livros que ele próprio requisitara; e assim resultava uma pesquisa no computador sem um resultado aproveitável. Por outro lado, todos os anos por razões de protecção de dados, são eliminadas nas informações do utilizador as listas de livros requisitados, não deixando delimitar os hábitos e preferências dos leitores. Um criminoso não se deixava agarrar deste modo e, por isso todos os esforços se concentravam agora em apanhá-lo com a boca na botija. A biblioteca manteve-se por isso sempre aberta sem restrições.

Depois de todos os funcionários terem sido informados que se tratava de um criminoso em série, as suspeitas contra os leitores tomaram tal proporção que perturbavam sensivelmente o ambiente. Os livros eram-lhes tomados das mãos e rapidamente revistados, os visitantes que tiravam uma caneta eram imediatamente interrogados. Depois de várias queixas foi dada ordem aos funcionários que não se preocupassem com o caso e que deixassem isso para a polícia, mais propriamente para o comissário Michael Kammrath.

Kammrath entrou para a polícia há quatro anos atrás como conselheiro dos serviços criminais depois da sua oficial admissão à ordem dos advogados e tem vindo a trabalhar desde então na área de crimes de colarinho branco. Normalmente ele não tem nada a ver com o serviço externo, mas uma vez que é coleccionador de livros antigos e membro das Noites Bibliófilas de Leipzig, um amigo e conhecedor de livros de boa produção, pareceu ser o predestinado ao caso e foi incumbido de constituir a "Operação Livro". Daqui para a frente passaria o seu tempo na Biblioteca Municipal.

Para obter uma primeira impressão do caso, o conselheiro criminal seguiu as suas preferências, pegando primeiro nos clássicos alemães e depois nos internacionais.

Em alguns dramas de Lessing encontrou versões meticulosamente riscadas, onde apenas a primeira cena ainda sobrevivia. O resto tinha sido completamente pintado a marcadores pretos e grossos, tornando daí o texto irreconhecível. Nos tomos da edição de Goethe de Berlim Oriental, as quatro linhas do poema absurdo de Loriot "Melusina" ("kraweel kraweel") estão escritas centenas de vezes nas margens das páginas. Schiller foi desenhado abstrusamente como um "idiota feioso" nas suas obras e biografias e, na cuidadosamente elaborada edição fac-simile de Hölderlin encontra-se muitas vezes, na diagonal à configuração da página, o número de telefone de uma linha de apoio espiritual de Frankfurt am Main.

A literatura inglesa não vai muito melhor. Nas edições de Shakespeare os seus tradutores são celebrados como "Schlegel e Tieck = superstars da terapia da fala"; o título de Virgínia Woolf "Rumo ao Farol" é deturpado ao cortar letras do título em alemão "Fahrt zum Leuchtturm" retirando portanto a "fahrt" o "h", o que em inglês daria qualquer coisa como "fart" equivalente em português a "peido". Alguns autores menos conhecidos têm de se contentar com a designação de "romance Fish & Chips" para o seu género em vez de "novel". Até ao sul-africano J. M. Coetzee, vencedor por duas vezes do Prémio Booker, lhe mudaram não só o nome para "Jodel Mädel Kotze", uma junção de palavras que em português não faz muito sentido, "gorjeio menina vómito", mas ainda lhe dão o título de "prostituto UK".

Os americanos têm outra sorte. Nas edições de contos de Edgar Allan Poe, Kammrath encontrou muitas abelhinhas carimbadas ao estilo dos louvores do ensino básico. Nos livros do autor sanguinário Bret Easton Ellis, estava escrito centenas de vezes ao modo de Bart Simpson "continua assim, pá" e John Updike foi louvado com "o melhor sexo que já tive". Só Philip Roth é que ganhou a denominação de "Porcaria de Prémio Nobel".

A literatura francesa não foi atacada da mesma maneira. Só as obras do século XVIII foram tão minuciosamente agredidas. Em todas as edições do "Contrato Social" de Jean-Jacques Rousseau foram coladas algumas páginas da obra, e sobre a primeira página escreveu-se "edição de luxo do IKEA" chamando a atenção para a cadeia de lojas de móveis sueca que põe à disposição nas suas prateleiras livros prescindíveis para efeitos de simulação.

O caso é menos evidente nas traduções do escritor espanhol Lope de Vega, nas quais a letra "m" foi meticulosamente enegrecida. Era aparentemente uma brincadeira endereçada ao autor do "siglo de oro" que em cinco dos seus contos esqueceu-se propositadamente de uma das vogais, ora falta um "a", ora um "e" e por aí adiante. Aqui começa o mistério de algumas acções desfiguradoras. Porque é que se enegrecia o "m" quando nos livros de Lope faltavam as vogais?

É naturalmente questionável se é obrigatório encontrar um sentido para os variadíssimos e obsessivos comentários escritos ou se os próprios factos deveriam ser o ponto central da investigação, que em mira estivesse, portanto, a destruição da propriedade estatal. Seja como for, Kammrath queria perceber o sentido da acção para encontrar o trilho do criminoso, pois apesar disto ser loucura há nela algo de metódico.

Ao longo da sua investigação, o conselheiro criminal encontrou a dada altura num livro a entrada "Plutarco, Bruto, em alemão, 1959, do Dr. Karl Atzert, o burro, pág. 4". O citado livro com tradução de Plutarco estava na verdade disponível no acervo. Na página correspondente havia outra indicação para um livro, no qual havia mais indicações para outros livros. Kammrath lembrou-se logo que este caminho era semelhante a um sistema hipertextual. Mas para onde é que ele seria levado por esta "caça ao tesouro"?

Nalguns livros que se seguiram, encontrou dois ou mais comandos de salto de indícações, dos quais apenas um não incorria numa busca em círculo. Esse comando tinha de ser encontrado, se ele quisesse continuar a seguir a pista do criminoso. Este tinha vindo ultimamente a colar etiquetas escritas nos livros em vez de se ocupar a manipulá-los a caneta – talvez para acelerar a colocação das pistas. Ele queria muito possivelmente protelar a sua descoberta, mas seria apanhado mais cedo ou mais tarde, se continuasse a saltar de livro para livro sem objectivo nenhum.

Quando os links apontavam para exemplares entretanto requisitados, Kammrath tinha de procurar quem tinha sido o requisitante para chegar até à próxima pista. A caça ao tesouro tardava significativamente e ele navegou, por isso, semanas a fio na rede da biblioteca.

Finalmente o colocador das pistas apontou para um livro, que nem estava no seu lugar, nem tinha sido registado como requisitado. Agora o acaso ajudava um bocadinho. Kammrath encontrou o tomo numa sala de arrumos com velha literatura da RDA. Esse livro tinha sido aparentemente colocado fora do seu lugar para que mais tarde pudesse ser trabalhado, uma vez que na página anunciada não havia nenhum link disponível. Depois de Kammrath comunicar o seu achado à administração da biblioteca, o livro foi colocado sob observação.

Na própria sala da RDA ele não podia ficar à espera, pois isso tiraria a vontade ao criminoso de cometer mais um crime. Do mesmo modo também não poderia mostrar a todos no corredor o seu olhar de suspeição. Kammrath colocou, por isso, no livro um detector de movimentos preparado para os seus objectivos e passava o tempo na sala da literatura de ficção em alternância com dois colegas.

Era um sábado de manhã cedo. Kammrath tinha acabado de entrar de vigia ao livro e começou a ler o jornal. De repente, o detector deu sinal de vida e eis que o crime passou a ter um rosto.

O criminoso da caneta de feltro era Christoph Z., que no processo de ser descoberto corou, mas não pronunciou nenhuma palavra. Depois de Kammrath encetar uma investigação grafológica, os dados pessoais de Z. foram apreendidos.

O estudante agora já mais velho, matriculara-se em Direito em 1993 em Heidelberg, mas mudou em 1995 para Leipzig, para iniciar Estudos Germânicos e Filosofia. A sua morada permanente ainda se reporta a Tübingen, a casa dos pais, e como morada secundária, há registado um quarto numa residência de estudantes em Leipzig, o qual Z. já tinha deixado há três anos atrás. Actualmente mora lá um estudante de intercâmbio do Burkina Faso, para quem o nome de Z. é totalmente desconhecido. Omite o local onde agora Z. pernoita em Leipzig, não pode ou não quer dar uma morada.

Uma pesquisa ao ambiente social de Z. não traz grandes conclusões. Não se encontram amigos próximos, informações sobre Z. apenas são possíveis através de colegas que o conhecem só de vista.

Ele também passou despercebido aos seus professores da universidade. Os seus trabalhos dos seminários são ensaios de nota média, sobre temas gerais como a Alegoria da Caverna, o signo linguístico ou a intertextualidade. As cópias dos trabalhos não ficaram na universidade.

Os únicos documentos, nos quais a polícia se podia apoiar na busca do motivo do crime, encontravam-se na mochila que Z. trazia na hora de ser desmascarado. Os autocolantes escritos e os famigerados marcadores verde-escuro, as canetas de feltro de várias cores e as esferográficas, assim como uma lista imprimida de títulos de livros são apenas provas do crime, não constituindo nenhuma indicação do motivo.

Quando de repente Kammrath se encontrou frente a Z. nesse sábado, este tinha um autocolante nos dedos, que ia colar no livro que estava fora do lugar. Ao lado da indicação para o próximo livro estava impresso "A letra n.o 23556 foi articulada." Seria isso possivelmente uma alusão à quantidade de manipulações? Será que Z. fez a contabilidade das suas operações? Será possível que exactamente 23556 livros já tivessem sido estragados?

Para descobrir isso, há dois estudantes assistentes que se ocupam 24 horas por dia com a supervisão do acervo da biblioteca. Thomas Grau, estudante de Estudos Germânicos tal como Z., mostra o seu polegar ferido por folhear os livros. O trabalho aqui é enriquecedor para ele e é pena, nas suas palavras, que não se possa dedicar tanto tempo a certos livros, mas ele está convencido que "folhear livros educa, pois se vai sempre de encontro a um livro ou outro, cujos nomes até já se conhecem e se querem ler impreterivelmente". Ele requisitou por exemplo, logo no primeiro dia "O Declínio do Ocidente" de Oswald Spengler, autor que até agora só lhe era conhecido de nome, mas ainda não o tinha conseguido ler a sério. Tratava-se de um exemplar ainda praticamente intacto. Acerca do crime do seu colega, já não procurava mais nenhuma explicação. "Ele simplesmente passou-se, é tresloucado e mais nada."

A sua colega Sandra May, que o ajuda na inspecção, vê o caso de modo bem diferente. As situações precedentes serão possivelmente discutidas como tema da sua monografia de licenciatura. Estuda sociologia no oitavo semestre e interpreta os comentários de Z. como "distinções" comunicadas, que documentam o seu conhecimento de alguns autores e obras e que certamente o faziam sobressair entre os outros.

Obviamente que o caso parecia mais para psicólogos, pois uma explicação do procedimento de Z. não podia ser dada pela socióloga. Ela reflecte sobre a possibilidade de o caso de Z. não poder ser interpretado como "uma espécie de obra de arte", mas afasta rapidamente essa ideia tendo em vista os prejuízos causados. "Bem, todos os anarquistas que atacassem a propriedade social, seriam então artistas." Mas isso já é para ela demasiado avant-garde.

Os primeiros e vagos cálculos estimam um prejuízo no valor de cerca de um milhão de euros sem contabilizar as caras investigações e medidas de reaquisição de livros. Z. agora tem interdição de entrada em todas as bibliotecas de Leipzig e também tem uma acusação apresentada contra si.

Soubemos mais sobre o comportamento de Z. através do Task Force estudantil, que para além de registar todas as cotas de livros estragados descreve também a tónica de todas as entradas.

Ele não deve ter feito quase nenhuma das suas operações em livros requisitados, mas sim apenas no próprio local, para que as acções dos rabiscos não lhe sejam imputadas imediatamente. Para além disso, seria quase impossível requisitar tantos milhares de livros por ano.

Possivelmente a princípio, Z. apenas apontou erros de tipografia em livros escolhidos. Talvez já se pudessem encontrar ocasionalmente partes sublinhadas num ou noutro livro. Por fim, todos os crimes são apontados a Z.

A partir de um certo momento, ele passou a aparentemente gostar de ter mais atenção pelos seus actos e perscrutou toda a biblioteca com a ponta do seu marcador. Não se contentou mais com o simples sublinhar de erros de composição ou ortográficos, e foi, pouco a pouco, colocando em acção uma máquina de comentários implacável.

No livro "Mudança Estrutural da Esfera Pública" de Jürgen Habermas, da edição Suhrkamp, Z. assinalou na página 162 a falha de um "l" com um rasgão do canto superior até ao meio da página, exactamente até ao sítio onde falta a letra. Por baixo, ele escreve ousadamente e ocupando várias linhas, com uma caneta de feltro grossa: "Bolas! enésimas edições e ainda há estes erros."

No livro de refêrencia de Niklas Luhmann, "Sistemas Sociais", um livro de mais de 600 páginas, cada linha está sublinhada com o já referido marcador verde-escuro. Para além do facto de este modo de sublinhar ser cometido ad absurdum, os seguintes leitores devem ter ficado no mínimo irritados. Um exemplar assim adulterado torna-se inútil para uma biblioteca.

Wolfgang Hohenberg traz o seu casaco cinzento aberto e por baixo aparece uma t-shirt azul com o logótipo da candidatura de Leipzig aos Jogos Olímpicos. Este sexagenário é director das bibliotecas municipais e adora a índole centenária das bibliotecas da cidade. Segundo ele, os incidentes na Biblioteca Municipal de Leipzig equiparavam-se a um ataque à cultura da leitura, mas apenas tinham, "graças a deus", um único criminoso responsável. Para além disso, as medidas de conservação do acervo tinham sido reforçadas desde a descoberta dos prejuízos. Todos os funcionários tinham ordens de folhear os livros no acto da entrega.

Hohenberg considera que em primeiro lugar está a recuperação do inventário. Ele não crê que todos os livros estragados de Z. tenham de ser retirados. Poder-se-iam ignorar os comentários singulares e colar qualquer coisa por cima dos rabiscados mais leves.

Naturalmente que nem todos os livros com anotações nas margens se tornam automaticamente inutilizáveis. Mas os comentários de Z. possuem um potencial provocativo que nem sempre se deveriam imputar aos leitores. Nos livros de Umberto Eco há muitas vezes a indicação "como Ken Follet & não tem fim" que é uma afronta pensada contra os fãs leitores que é repetida nos livros de Follet, "como Umberto Eco & não tem fim".

Se um livro já não estiver em condições de ser lido, mandam-se os leitores para a Biblioteca Nacional da Alemanha ou para a Biblioteca Universitária. Helfried Eckart, o director desta última biblioteca que só foi reaberta oficialmente em Outubro de 2002, mostra-se solidário. "Emitiremos um cartão de leitura temporário para todos os utentes da Biblioteca Municipal", segundo promete. Não teme pelo seu próprio acervo, mas também não tem nenhuma explicação para o facto de o criminoso ser um aluno da Universidade de Leipzig, que não se tenha decidido pela Biblioteca Universitária, mas pela Municipal.

Depois das notícias no jornal sobre os incidentes, Eckart despediu logo uma funcionária que examinou os tomos indicados. "Não conseguimos descobrir nenhuma desfiguração dessas, mas o controle sobre os livros devolvidos reforçaram-se, para desvendar eventuais prejuízos imediatamente." Quase todos os livros estão protegidos contra roubo, mas não contra devastação de ordem gráfica.

A solidariedade demonstrada por parte de toda a cidade de Leipzig não é casual. Quando em Março se tornou conhecida a dimensão do vandalismo aos livros, o sensacionalista jornal "Bild" familiarizou os seus leitores com o "violador de livros de Leipzig". No entanto, não era o criminoso que era o ponto central das notícias, mas o facto de que a grande devastação lançada aos livros já se vinha a desenrolar de modo subtil há anos. Apesar da mediática distracção causada pela guerra do Iraque, que se iniciava nessa altura, e das, por isso, reavivadas manifestações de segunda-feira em Leipzig, que contribuiram em 1989 para a queda do regime comunista, a cidade do livro temia bruscamente pela sua reputação.

Os vultos literários da cidade, sobretudo Christian-Erich Führlos, apelaram a donativos num anúncio do jornal da cidade, o "Leipziger Volkszeitung". "A cidade dos livros pode perder a sua fama", segundo Führlos. As obras do mais conhecido autor de Leipzig foram poupadas pelo "violador de livros", possivelmente porque se encontravam expostas em vitrinas de vidro à subida das escadas da biblioteca.

Também o seu romance mais recente, "O Último Processo", que já aparecia na imprensa local como pré-edição, se mantém proeminente e impecável por detrás das vitrinas de vidro. Nesse livro Führlos trata do processo contra os autores do atendado ao Ministro dos Negócios Estrangeiros, Walther Rathenau, que teve lugar no Reichsgericht, o actual Tribunal Federal Administrativo, à distância de duas ruas da Biblioteca Municipal.

Ernst von Salomon, um dos autores do atentado, retrata no seu romance autobiográfico, "Os Reprovados", como depois da I Guerra Mundial ele comprou e leu entusiasticamente o livro de Rathenau, "Das Coisas Porvir". Mesmo depois do assassinato, ainda tinha consideração por Rathenau, mas participou todavia no complô assassino, uma vez que era importante confundir a jovem e mal-amada República para que se destruíssem os seus alicerces.

Führlos vê, tal como no passado, o terror em acção. "O que se passou aqui é um ataque terrorista à palavra escrita assim como ao seu leitor". Führlos fala da liberdade da leitura, da liberdade que se alcançou a custo, e espera-se, por assim dizer, que ele transforme a conhecida expressão de Heinrich Heine, "onde se rabiscam livros, acaba-se rabiscando pessoas".

Este é o pathos de Leipzig. Mas longe das lúgubres profecias há uma perspectiva hilariante sobre as operacões do "terrorista de livros", como Führlos não se cansa de lhe chamar.

Ao lado da infinita frase com que Hermann Hesse inicia "Narciso e Goldmund", lê-se uma nota, "manteiga, leite, banha de porco", e "Logo vi!" é o seu comentário ao "Buddenbrooks" de Thomas Mann. Para documentar um estranho processo de compreensão, ele repete-o em cada página, em parte a exclamação fica por cima de determinadas palavras.

"O caso não é tão simples como Christian-Erich Führlos o apresenta", contrapõe Michael Kammrath ao poeta de Leipzig. O conselheiro criminal, que após o esclarecimento do caso, voltou para a pilha de documentos no seu escritório, tenta não revelar-se demasiado surpreendido. Para ele, Z. perdeu-se ao misturar destrutivamente bibliofilia e bibliofobia. Uma circunstância que ele lamenta, pois por trás de todos os comentários, esconde-se um verdadeiro conhecedor de literatura.

Ele refere, como exemplo, o trato de Z. com Jorge Luis Borges. Na primeira página de todas as antologias que contêm o conto "A Biblioteca de Babel", Z. adicionou a indicação em rima, "BE QUIET THERE'S NOTHING THAT ISN'T ALREADY IMPLIED".

O assim protegido escritor argentino publicou contos meta-ficcionais que se inscrevem no realismo mágico. O conto de Babel inventa uma biblioteca infindável, cujas estantes contêm todas as possíveis combinações de letras, "portanto tudo, o que é possível exprimir, em todas as línguas". Mas sobre uma frase com sentido também recaem "milhas de insensatas cacofonias, de confusões verbais e de incoerências".

Também em Leipzig se encontravam livros com inscrições insensatas, sequências de consoantes ao acaso, ou poemas feitos de versos aparentemente dadaístas, tais como a passagem "balurpo / balurpo sikstran / balurpo plektran / kselekt" na edição Reclam de "De Bello Gallico" de César. Kammrath supõe que Z. codificou neste caso declarações com sentido baseadas no princípio de rotação das letras de César. Mas não o pode provar.

Paralelamente a esta tendência para mensagens incompreensíveis, o que, acima de tudo, dá nas vistas é a raiva de comentar, que se dilui constantemente numa incondicional ambivalência.

Nos poucos livros de Arno Schmidt que pertencem à biblioteca, encontra-se em quase todas as páginas, a denominação de "Testemunha Principal", muitas vezes interrompido por "Testemunha de Sangue" ou "Testemunha da Estupidez", o que quer que isso seja (talvez então só "coisas da estupidez"?). Schmidt também se distingue como "bom antifascista – mau poeta".

Além disso, abaixo da irregular numeração de página, repete-se a abreviatura "FAZ 26. 10. 02". Na verdade, encontra-se na edição correspondente do "Frankfurter Allgemeine Zeitung" um artigo póstumo da mulher de Arno Schmidt, Alice, sobre uma viagem no ano de 1952. Aí, Martin Walser quer saber de Schmidt, "por que razão estavam nos seus livros alguns trechos que lhes (a Walser e Alfred Andersch; F. F.) incomodavam muitíssimo, trechos com explosões de raiva contra os nazis. Não eram os próprios trechos que lhes desagradavam, mas sim a formulação profana deles em comparação com o brilho dos outros". Alice Schmidt deixa o seu marido responder: "Sim, também quero dar uma imagem do meu tempo, onde pertencem tanto a música popular, como estes ditos, que nesse tempo milhares tinham na cabeça."

Z. também queria aparentemente "dar uma imagem do seu tempo". Ele parecia mais interessado nos folhetins actuais e nas revistas literárias do que na literatura secundária referente aos seus estudos. Os seus comentários definem-no como um polémico que conhece a literatura mundial e contemporânea.

Partindo de leituras de jornal habituais, ele propôs-se a agir sobre todos os livros de autores recenseados há pouco tempo e associou-lhes os seus comentários arbitrariamente. Trata-se muitas vezes de citações directas de críticas literárias que identificam Z. enquanto leitor obsessivo do folhetim transregional.

No livro de Christa Wolf "Der geteilte Himmel" ("O céu dividido"), ele substituiu o título pelo jogo de palavras de Thomas Brussig, "Der geheilte Pimmel" ("A gaita cicatrizada"). Nas obras mais recentes, ele escreve sistematicamente excertos, partindo de uma crítica aniquiladora ao romance de Wolf lançado em 2002, "Em Pessoa", publicada pelo jovem crítico Stephan Maus no jornal "Frankfurter Rundschau": "Kassandra no tomógrafo de ressonância magnética", "irmãos, para o sol, para o foco purulento", "errante passeio de domingo aos lugares-comuns", "salto de cavalo pelo dicionário de sinónimos", "crónicas diletantemente escritas partindo de auto-comiseração sem fantasia".

Pode ser sinceramente indiferente à administração da biblioteca o significado profundo de tais notas, porque, para além da reconstrução do acervo, tem novas preocupações: os relatórios sobre os episódios atraíram um novo público, gente curiosa que folheia freneticamente os seus livros preferidos na esperança de encontrar uma declaração de Z.

A administração da biblioteca não queria tornar pública a discussão sobre utentes pretendidos e não pretendidos, mesmo sendo agora conhecido, que muitas centenas de desfigurações de livros não absolvem com sucesso a comparação grafológica com a escrita de Z.

Mas não só. Ultimamente as entradas obscenas encontram-se também em tomos que foram, há poucas semanas, classificados inequivocamente como "não deteriorados" pelos estudantes assistentes.

Talvez agora sejam necessárias outras medidas mais do que um inventário actualizado.

Artigo publicado no dia 19 de Maio de 2003.

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